terça-feira, 7 de dezembro de 2010

TEXTO DE MALU FATORELLI PARA O GRUPO CADEIRA VIRADA

CADEIRA VIRADA

Malu Fatorelli*


“Em arte o importante é aprender a linguagem e formar um vocabulário próprio. Dono dessa língua, pouco importa que a fala seja o óleo, o metal, ou a pedra. A letra de forma não melhora o pensamento!”
Cadeira Virada é o nome de um grupo, formado por cinco artistas, que apresenta seu trabalho na Galeria Cândido Portinari da UERJ. Em agosto de 2010, a convite do Departamento Cultural da UERJ, fui encontrá-los no ateliê do SESC Tijuca, com o objetivo de escrever um texto para essa exposição.
O encontro no ateliê do SESC lembrou-me da experiência na coordenação da Sala Imagem Gráfica . As exposições, apresentadas na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage e na Galeria Cândido Portinari da UERJ, mostraram diferentes aspectos da produção gráfica de artistas contemporâneos. Um livro – Sala Imagem Gráfica 1992/1995 – reuniu artistas como Aluísio Carvão, Anna Bella Geiger, Carlos Martins, Paula Trope, Maria Lucia Cattani e Rubem Grilo, apresentando uma produção gráfica a partir de diferentes poéticas artísticas. A Sala encerrou suas atividades no final da década de 90 e, com certeza, foi uma experiência importante como observatório dessa produção. Aproveito para retomar algumas questões em torno do assunto com a exposição do Cadeira Virada.
O grupo Cadeira Virada é formado por João Moura, Marcelo Oliveira, Gian Shimada, Paulo Jorge Gonçalves e Rafael Kuwer e foi criado, inicialmente, com quatro artistas que pensavam em usar um quadrado ou um cubo como imagem e referência. Com a entrada do quinto participante o “equilíbrio” acabou e a cadeira “virou”. A condição de instabilidade, favorável à pesquisa artística, é expressa em um logotipo que mostra o desenho da silhueta de uma cadeira antiga em diferentes posições que contrariam a lógica da força da gravidade. (adesivo de parede)
A criação de grupos de artistas em torno de ateliês de gravura tem como referência histórica os Clubes de Gravura. Segundo Aracy Amaral , a produção da obra múltipla fundamentava-se na experiência revolucionária mexicana, e no Brasil, os Clubes de Gravura reuniram artistas trabalhando com preocupações sociais e políticas, no início da década de cinquenta.
No Rio de Janeiro, um espaço de referência para a prática da gravura foi o ateliê do MAM, aberto em 1959, que abrigou uma importante geração de artistas com trabalhos em torno da abstração informal .
É recorrente a existência de grupos de artistas e ateliês que lidam diretamente com processos associados à gravura. Muitas vezes, o uso compartilhado dos equipamentos e do espaço acaba determinando outras proximidades ou diálogos artísticos. Foi o que aconteceu no caso do Cadeira Virada. Os artistas se conheceram e se aproximaram a partir do convívio no SESC.
Uma questão relevante nas considerações desta apresentação está colocada na escolha da epígrafe do texto. É uma frase escolhida em uma das cartas de um livro que reúne a correspondência entre Mario Carneiro e Iberê Camargo (1953-1969) . As cartas trazem belos diálogos sobre arte em geral e gravura, em particular, mostrando relatos interessantes sobre as dificuldades de aprendizagem das diferentes técnicas e também de aquisição dos materiais. Nesse diálogo, evidencia-se a fala de Iberê no que concerne à questão da linguagem.
Falar de linguagem artística na contemporaneidade não é esquecer os meios técnicos ou os materiais, mas entendê-los na perspectiva das proposições poéticas. Retomando a fala do mestre Iberê: “Em arte o importante é aprender a linguagem e formar um vocabulário próprio”. Poderíamos olhar os meios técnicos como uma espécie de arqueologia da linguagem. A constituição da obra passa por meios específicos que são apreendidos e transformados pelos processos e metodologias do trabalho artístico.
Em se tratando de um grupo de “gravadores” essa questão se torna particularmente importante porque muitas vezes tal denominação generaliza e “cola” a poética a um determinado meio. Para minha surpresa, na medida em que nosso diálogo se desenvolveu no ateliê do SESC, as questões de linguagem foram tomando o lugar das discussões técnicas específicas e o universo gráfico se evidenciou como suporte de operações poéticas abrangendo aspectos da cidade, fabulações a partir de imagens capturadas no percurso cotidiano, personagens urbanos anônimos convocados à proximidade, diário de memórias afetivas familiares e jogos lúdicos a partir da repetição e da multiplicidade.
Nos trabalhos dos participantes do Cadeira Virada, em sua maioria, os processos tradicionais da gravura de arte como a litho, a xilo, o metal e a serigrafia sugerem diferentes combinações e associações com procedimentos individualizados, “inventados” nos processos de realização das obras, regidos pelas diferentes poéticas artísticas. Para minha surpresa, nenhum dos artistas realiza tiragens numeradas e assinadas, seguindo as especificações tradicionais. Muitas vezes, o procedimento transforma o múltiplo em original, e em alguns casos, o processo de impressão, seja pelo suporte ou pelas características da imagem, torna impossível a assinatura e inadequada a produção de uma tiragem limitada.
Mestres como Durer, no século XVI, assinavam suas gravuras na própria matriz de tal forma que cada reprodução trazia a marca do artista. A assinatura fora da imagem impressa é uma autentificação exigida pelo mercado que estabeleceu regras de identificação de autoria e quantidade. O que limita a tiragem não é mais a condição de reprodutibilidade da matriz, mas uma especificação dada pelo artista. Algumas obras contemporâneas tencionam esses procedimentos e tornam a imagem impressa parte de operações poéticas que, por razões conceituais ou processuais, não deixam espaço para a assinatura dentro ou fora da imagem.
No catálogo da exposição “L’EMPREINTE” , Didi-Huberman aponta que a impressão faz surgir do visível a questão do contato. É uma passagem cega, obtida sem mediações, entre matriz e imagem em formação. Essas passagens por contatos no interior da matéria introduzem uma dupla distância temporal: uma dimensão de origem arqueológica e imemorial e outra que desafia a história, pois se recusa a ocupar um lugar determinado na evolução do estilo. Na produção contemporânea a imagem impressa traz uma temporalidade imprecisa que, impossível de ser ignorada, tenciona relações entre pensamento, processo e gesto.
No trabalho do Cadeira Virada encontramos algumas referências a essas questões como, por exemplo, na obra de Gian Shimada, coordenador do ateliê do SESC. Formado pela Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ em 1992, foi aluno de Adir Botelho e conhece profundamente o universo das técnicas gráficas. Seu trabalho explora diferentes suportes propondo contaminações no espaço da cidade.
Gian utiliza para suas impressões xilográficas, em grandes formatos, um duplo suporte. Não mais as imaculadas folhas de papel de algodão, específicas para impressões gráficas, mas folhas do Mapa das Artes do Rio de Janeiro e os muros da cidade. Nesse trabalho, o suporte recusa um lugar de invisibilidade para assumir outros planos conceituais evocados pelo mapa e pela cidade. Bidimensionalmente, o mapa colorido que marca o lugar das galerias e instituições artísticas impõe à massa negra da imagem xilográfica um diálogo cromático, que também ironiza o desejo de pertencimento a um circuito ao permanecer colado do lado de “fora” nos muros urbanos.
A geografia do circuito artístico é tencionada por essas colagens que disputam o espaço com outros eventos da cidade, ao mesmo tempo em que instauram e conquistam outros territórios na relação entre arte, cidade, galeria e museu. Esse fato é reforçado pela utilização da xilogravura neste trabalho, pois a técnica que evoca a criação dos incunábulos é também a mesma da gravura de cordel, que na tradição brasileira, fala da vida cotidiana e é vendida na rua pendurada como roupa no varal. Assim, a escolha da xilo reafirma a proposição poética do artista no confronto entre pertencimento e exclusão de circuitos e lugares.
Diário de deslocamentos urbanos e registros de personagens anônimos são construídos por Marcelo Oliveira com matrizes “encontradas” no fundo de gavetas, mais precisamente, confeccionadas com pedaços de madeira ou aglomerados utilizados para fazer partes de móveis antigos desmontados e redescobertos pelo artista.
O trabalho de Marcelo, que antecede à série dessa exposição, era composto por elementos decorativos modulados e instalados em diferentes formatos sobre a arquitetura. O trabalho atual utiliza a modulação e a repetição para afirmar o anonimato. Uma espécie de galeria de retratos com rostos de múltiplos personagens aproxima pedaços do mobiliário com o movimento e a memória da passagem cotidiana do artista em seu trajeto pela cidade.
As marcas do fundo da gaveta guardam uma potência poética e formal que é intensificada com outros procedimentos como máscaras e estêncil. Os processos de impressão utilizados por Marcelo reforçam a presença do material, restos que revelam texturas para mostrar retratos de dentro e de fora, casa e cidade, contraponto de percurso e poética artística.
As imagens presentes na obra de Rafael Kuwer são retratos de uma série de trabalhos que tem a mesma idade de seu filho Mateus. Os desenhos de Mateus são inspiração, modelo e origem do trabalho paterno na construção desta arquitetura afetiva.
Rafael é professor de arte e trabalha com crianças em Paraty. Devedor das imagens infantis, ele coleciona desenhos do seu filho feitos em cadernos e folhas soltas. Essas imagens são o “suporte” para xilogravuras de diferentes formatos e também de vídeos que mostram aspectos de procedimentos gráficos como um jogo de montagem, colagem e impressão.
Parece impossível desvincular essas imagens de seu espaço íntimo, de seu lugar afetivo de quarto, de brinquedo e de cumplicidade entre pai e filho. O espaço da exposição incorpora a casa, o quarto, a parede azul, o tapete, a TV e o quadro com fotos e desenhos. Esses elementos pertencem ao trabalho, são a moldura e o lugar do afeto.
No trabalho de Paulo Jorge Gonçalves, técnicas gráficas se sobrepõem para formar uma linha que constitui um gesto gráfico construído a partir de sucessivos procedimentos que aludem a um jogo. Armar, desdobrar, montar, ocupar e expandir. Exercício lúdico para gravar um gesto e ocupar o espaço da arquitetura.
Ao relatar seu processo de trabalho, o artista Paulo Jorge revela que algumas imagens permanecem fixadas em sua memória e posteriormente são revisitadas e recortadas como pequenos pedaços de uma fotografia. Imagens que aparecem ao acaso, como a fumaça que sai de uma chaminé, determinam fabulações que geram desenhos, impressões e percursos gráficos.
A impressão é um processo na configuração de uma linha que é solta no espaço, é seu suporte e limite. Potência gráfica que se desdobra em diferentes possibilidades. Linha - objeto múltiplo e original. Provoca contaminações na arquitetura propondo um outro lugar, o lugar do jogo, do encantamento e do rigor inexato da matéria.
Dos artistas que compõem o grupo Cadeira Virada, João Moura trabalha mais especificamente com a xilogravura. Sua obra traz elementos de um realismo fantástico, comum a alguns artistas latino-americanos. Uma cartografia biográfica registra diferentes lugares onde o artista viveu.
Em um procedimento tradicional, terminada a tiragem, a matriz deve ser inutilizada ou guardada para que não haja reproduções além do número determinado pela tiragem. No trabalho de João Moura, as matrizes xilográficas são reaproveitadas.
Para reutilizar a matriz, João raspa a imagem original, mas essa raspagem não apaga completamente os registros da gravação anterior; deixa um resto ou rastro da imagem que flutua fixada entre uma e outra impressão. É como um palimpsesto, uma espécie de memória seletiva e interna ao processo que deixa ver extratos de tempos, lugares e personagens que povoam a obra do artista.
Ao apresentar o Cadeira Virada busquei uma aproximação dos domínios poéticos das obras dos participantes do grupo. Decifrar as “letras de forma” destas escritas sensíveis e atentas trouxeram muitas questões sobre as escolhas de cada artista. O ateliê pontua e aproxima a história de convivência do grupo, mas é também o lugar do desdobramento dos caminhos de cinco pessoas que apontam diferentes possibilidades de diálogo com a arte.

Epígrafe do Texto. CAMARGO, Iberê e CARNEIRO, Mário. Iberê Camargo/Mario Carneiro: correspondência. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/ /Centro de Arte Helio Oiticica/ Rio Arte, 1999.


Sala Imagem Gráfica – trabalho realizado em colaboração entre a UERJ e o Parque Lage, coordenado por George Kornis, Nelson Augusto e Malu Fatorelli.

AMARAL, Aracy. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira 1930-1970: subsídios para uma história social da arte no Brasil. São Paulo: Nobel, 1987.

COCCHIARALLE, Fernando e GEIGER, Anna Bella. Abstracionismo geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos anos cinquenta. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1987.

Epígrafe do texto. Opus cit.

L’EMPREINTE. Exposição realizada no Centro Georges Pompidou em 1997. Catálogo e curadoria de Georges Didi-Huberman.

Epígrafe do texto.Opus cit.
*Maria Luiza (Malu) Fatorelli é Doutora em Artes Visuais (EBA-UFRJ) e Professora Adjunta do IART-UERJ e da Escola de Artes Visuais do Parque Lage.